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Filme: Uma Família Feliz

Crítica | ★★★★☆ | A reviravolta ao final cumpre o que promete. Este clímax não só surpreende mas também provoca reflexão sobre as verdadeiras motivações dos personagens e a natureza ilusória da verdade


Crítica do Filme: Uma Família Feliz - Por Richard Günter

O filme "Uma Família Feliz", lançado em abril de 2024, dirigido por José Eduardo Belmonte e roteirizado por Raphael Montes, é um thriller psicológico que explora as facetas da perfeição e as fissuras que se formam sob a superfície de uma vida aparentemente ideal. A cena inicial do filme estabelece imediatamente o tom do que está por vir: uma tragédia chocante que não apenas serve como catalisador para os eventos subsequentes, mas também como um símbolo das consequências devastadoras das decisões impulsivas e desesperadas. Esta abertura é um chamariz eficaz que prepara o terreno para um enredo repleto de tensão psicológica e reviravoltas.


O título do longa-metragem é evidentemente irônico, refletindo a crítica mordaz do filme ao conceito de uma vida perfeita como algo puramente baseado em aparências. Através de seu roteiro e caracterização, o filme desmonta a ideia de felicidade como uma imagem cuidadosamente curada, explorando como essa busca incessante por perfeição pode levar à ruína.


Raphael Montes, um nome respeitado na literatura brasileira de suspense, traz sua característica narrativa afiada e imprevisível, adaptada de seu próprio livro homônimo. Ele habilmente constrói sua narrativa com uma série de pistas sutis e enganosas que direcionam o espectador a suspeitar inicialmente de figuras arquetípicas dentro do núcleo familiar, como a madrasta má e o pai abusador sexual. Essas pistas são intricadamente tecidas ao longo do filme, com elementos como olhares prolongados, diálogos ambíguos, e ações contraditórias que sugerem uma dinâmica familiar perturbadora e oculta.


O roteirista usa essas insinuações para manipular as expectativas do público, mantendo-os engajados em um jogo psicológico onde as aparências são questionadas constantemente. Este artifício não apenas mantém a tensão e o suspense em alta, mas também serve como um comentário sobre os preconceitos e as expectativas da sociedade em relação aos papéis familiares, desafiando o público a reconsiderar suas próprias suposições e preconceitos sobre maldade e culpabilidade. As pistas são apresentadas de maneira que, ao mesmo tempo que indicam possíveis culpados, também plantam a semente da dúvida, culminando em revelações que são tanto surpreendentes quanto inevitavelmente lógicas dentro do contexto da trama elaborada por Raphael.


Já Belmonte, conhecido por seu estilo tenso e envolvente, faz uso de sua expertise para manter os espectadores à beira de seus assentos. Ele é reconhecido no cinema brasileiro por seu estilo distintivo e sua habilidade em explorar profundidades emocionais e sociais complexas em suas obras. Entre seus trabalhos mais notáveis, destaca-se "Se Nada Mais Der Certo" (2008), um filme que investiga a vida de personagens à margem da sociedade com uma narrativa crua e emotiva, e "Alemão" (2014), um intenso drama policial ambientado nos complexos e perigosos preparativos da ocupação policial no Complexo do Alemão, que antecedeu a instalação das UPPs no Rio de Janeiro. Outro marco em sua filmografia é "Meu Mundo em Perigo" (2007), onde Belmonte demonstra sua capacidade de criar personagens ricos e tramas entrelaçadas com um olhar sensível e provocador.


Em "Uma Família Feliz", Belmonte continua sua exploração de temas sociais relevantes, desta vez voltando seu foco para a dinâmica familiar e as percepções enganosas de normalidade, utilizando seu conhecimento em construir suspense e tensão para engajar o público em uma trama repleta de reviravoltas. Sua direção é uma prova de seu talento em captar a essência perturbadora das relações humanas, mantendo os espectadores imersos e reflexivos até o último momento.


Grazi Massafera, que interpreta uma das protagonistas entrega uma performance complexa como Eva, cuja profundidade é habilmente revelada através de sua expressividade e controle emocional. Reynaldo Gianecchini, por sua vez, encarna o 'marido perfeito' com uma habilidade que sugere mistério e possíveis segredos escondidos. Juntos, eles personificam a dualidade de uma fachada feliz contrastada com a realidade turbulenta.


José e Raphael fazem acenos a clássicos do suspense, incorporando e subvertendo tropas conhecidas, como a protagonista instável e o cônjuge idealizado. Para aficionados por thrillers, o filme oferece tanto familiaridade quanto novidade, equilibrando tradições do gênero com sua própria voz única. Entretanto, esta familiaridade também pode ser uma desvantagem, pois espectadores astutos podem antecipar algumas das reviravoltas.


A reviravolta ao final, descrita como chocante, cumpre o que promete, redefinindo as percepções anteriores dos personagens e dos eventos do filme. Este clímax não só surpreende mas também provoca reflexão sobre as verdadeiras motivações dos personagens e a natureza ilusória da verdade.


A partir daqui contém spoiler (não leia)

A temática central de "Uma Família Feliz" desafia uma noção profundamente enraizada na sociedade: a inocência inerente às crianças. O filme aborda, de maneira provocativa, a possibilidade de crueldade infantil, explorando como uma criança pode ser não apenas um receptáculo de pureza, mas também um vetor de manipulação e maldade. Esta abordagem é pouco discutida em narrativas mainstream, que frequentemente idealizam a infância como um período de inocência incólume. No entanto, o filme quebra esse tabu ao retratar uma criança que, longe de ser meramente uma vítima ou um elemento passivo, desempenha um papel crucial e ativo nos eventos perturbadores que se desenrolam. Essa perspectiva não apenas serve para intensificar o suspense e o impacto emocional da história, mas também provoca uma reflexão perturbadora sobre a natureza do mal e sua manifestação em qualquer idade, questionando os estereótipos comuns sobre comportamento infantil e moralidade.


"Uma Família Feliz" é um exemplar robusto do cinema de suspense moderno que utiliza uma narrativa clássica para explorar temas relevantes como verdade, percepção e a ironia das aparências. O Diretor e o Roteirista, uma dupla formidável, entregam um filme que é tanto um entretenimento eficaz quanto um comentário incisivo sobre a sociedade contemporânea. Adeptos do gênero e novos espectadores encontrarão muito para apreciar aqui, desde a direção calculada até as performances profundamente nuanceadas. Este filme não só entretém mas também desafia seu público a questionar o que realmente constitui uma "família feliz".


Assista ao Trailer

 

■ Por Richard Günter

Jornalista, pós-graduado em Roteiro Audiovisual e graduando de Cinema

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