Refletir com histórias | O filme é uma reflexão contundente sobre as relações de poder, classe e desigualdade social que permeiam a sociedade brasileira, especialmente no contexto da relação entre patrões e empregadas domésticas
"Que Horas Ela Volta?", dirigido por Anna Muylaert e lançado em 2015, é um filme que alcançou grande reconhecimento internacional e se tornou um marco no cinema brasileiro ao abordar questões sociais profundamente enraizadas na cultura do país. O filme é uma reflexão contundente sobre as relações de poder, classe e desigualdade social que permeiam a sociedade brasileira, especialmente no contexto da relação entre patrões e empregadas domésticas.
A trama gira em torno de Val, interpretada de maneira magistral por Regina Casé, uma mulher nordestina que trabalha como empregada doméstica em São Paulo. Ela é "quase como se fosse da família", uma frase que, ao longo do filme, revela seu caráter ambíguo e problemático. Val dedica sua vida à família dos patrões, criando o filho deles como se fosse seu próprio filho, enquanto sua própria filha, Jéssica, fica no Nordeste, sendo criada por parentes. A história toma um rumo diferente quando Jéssica, já adolescente, vai para São Paulo para prestar vestibular numa importante universidade, e sua presença desafia as dinâmicas estabelecidas na casa onde Val trabalha.
O filme apresenta, de maneira sutil e inteligente, a submissão de Val em contraste com a postura desafiadora de Jéssica. Val representa a velha geração de trabalhadores domésticos, que aceita as desigualdades e o tratamento inferior como parte da vida. Ela se submete às regras não escritas da casa, aceitando o tratamento paternalista e, muitas vezes, humilhante dos patrões. Ela sabe seu lugar na casa e não ousa cruzar os limites impostos. Já Jéssica, com sua postura questionadora, representa uma nova geração que não aceita as imposições arbitrárias baseadas em status social ou econômico. Ela questiona os hábitos estabelecidos, se recusa a aceitar as condições degradantes e, ao fazer isso, expõe as contradições e hipocrisias da família rica.
Um dos temas centrais do filme é o autoritarismo vil da patroa, que, embora disfarçado de gentileza e preocupação, revela um profundo desprezo pela classe trabalhadora. A patroa, Dona Bárbara, acredita estar fazendo um favor ao permitir que Val e Jéssica morem em sua casa. Ela se sente no direito de controlar os espaços e a vida de Val, impondo regras que, muitas vezes, invadem a dignidade e os direitos básicos da empregada. Quando Jéssica começa a desafiar essas regras, o desconforto da patroa cresce, revelando o quanto sua autoridade é baseada em um status quo que exclui e marginaliza.
O comodismo da família também é exposto de forma crítica no filme. A família dos patrões vive uma vida confortável e tranquila, baseada na exploração velada dos serviços de Val. Eles dependem dela para realizar todas as tarefas domésticas e para criar o filho, Fabinho, mas nunca reconhecem verdadeiramente sua humanidade ou suas necessidades. Para eles, Val é uma presença invisível, uma peça da engrenagem que mantém sua vida de privilégios funcionando. Essa indiferença é abalada pela chegada de Jéssica, que, ao exigir tratamento igualitário, força a família a confrontar o abismo social que sempre ignoraram.
O filme também destaca o choque social que ocorre quando Jéssica começa a ocupar espaços que, tradicionalmente, não são destinados a pessoas da classe dela. Ao reivindicar o direito de dormir no quarto de hóspedes, de se sentar à mesa com os patrões, e de frequentar a piscina da casa, Jéssica desafia o status quo e expõe a fragilidade das barreiras sociais. Esses gestos, que podem parecer pequenos, são na verdade revolucionários dentro do contexto de uma sociedade altamente estratificada como a brasileira. Eles simbolizam uma nova consciência social que começa a emergir, onde os direitos e a dignidade de todos os indivíduos são reivindicados, independentemente de sua posição socioeconômica.
"Que Horas Ela Volta?" não apenas retrata um Brasil em mudança, mas também serve como um espelho que reflete as tensões e os desafios que ainda precisam ser enfrentados para que essa mudança seja plena. O filme nos faz questionar até que ponto as transformações sociais e econômicas realmente impactaram a vida das classes mais baixas e o quanto ainda resta para se avançar em termos de igualdade e justiça social.
A relação entre Val e Jéssica é central para essa reflexão. Val, que no início vê a atitude de Jéssica como desrespeitosa e fora de lugar, aos poucos começa a compreender a importância de sua postura. Jéssica, ao desafiar as normas impostas, não apenas se afirma como indivíduo, mas também ensina sua mãe a reconhecer e reivindicar seu próprio valor e dignidade. A transformação de Val ao longo do filme é sutil, mas profunda, e reflete o potencial de mudança que existe em todos nós quando somos desafiados a enxergar o mundo de uma nova maneira.
Esse filme é uma obra que nos convida a refletir sobre as desigualdades que persistem no Brasil, especialmente no que diz respeito às relações de trabalho e poder. É uma obra que, ao contar uma história íntima e pessoal, consegue abordar questões universais e profundamente relevantes. Ela nos lembra que, apesar dos avanços, a luta por uma sociedade mais justa e igualitária ainda está longe de terminar, e que essa luta começa com o reconhecimento da humanidade e dos direitos de todos, independentemente de sua classe social.
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■ Por Richard Günter
Jornalista, pós-graduado em Roteiro Audiovisual e graduando de Cinema
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