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Filme: Ainda Estou Aqui

Crítica | ★★★★★ | Walter Salles promove um tributo à memória e à resiliência brasileira; Fernanda Torres entrega atuação visceral

Walter Salles entrega em “Ainda Estou Aqui” uma obra de extrema sensibilidade e profundidade histórica, ao revisitar um dos períodos mais sombrios do Brasil: o endurecimento da ditadura militar nos anos 1970. Inspirado na trágica história do desaparecimento de Rubens Paiva, ex-deputado cassado e torturado pelo regime, o filme segue os passos de Eunice (Fernanda Torres), sua esposa, que precisa lutar para manter a família unida enquanto enfrenta o peso do silêncio e a busca incessante pela verdade.


O longa se passa no Rio de Janeiro, onde a família Paiva vivia à beira-mar, cercada por amigos e com a vida pautada pela abertura e otimismo de um Brasil em transformação. Mas essa aparente normalidade é abruptamente rompida quando Rubens é levado por militares à paisana e desaparece, um evento que não só destrói a estabilidade familiar, mas também expõe a brutalidade de um regime que ceifou vidas e silenciou vozes em nome do autoritarismo. A partir desse momento, Eunice assume o papel de protagonista da própria sobrevivência e do legado do marido, enquanto enfrenta o luto, a repressão e a necessidade de reinventar o futuro de seus quatro filhos.


O filme é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens e Eunice, que revisita com coragem e sensibilidade a história de sua família. Trinta e cinco anos após o lançamento de Feliz Ano Velho, obra autobiográfica que marcou uma geração, Marcelo se volta ao drama de sua mãe e ao impacto duradouro do desaparecimento de seu pai. No livro, ele traça uma narrativa visceral sobre a luta incansável de Eunice pela verdade e pela memória, oferecendo um retrato íntimo e político do que foi ser uma família atingida pela repressão da ditadura militar no Brasil. O texto de Marcelo é uma ponte entre o pessoal e o coletivo, transformando dor em literatura e memória em resistência, o que serviu de base para a adaptação cinematográfica de Salles.


A atuação de Fernanda Torres é o coração pulsante do filme. Em uma performance visceral, a atriz incorpora a dor, a força e a determinação de Eunice com uma verdade impressionante. Seus silêncios, olhares e explosões de emoção traduzem a complexidade de uma mulher que, apesar do trauma, recusa-se a ser esmagada pelas circunstâncias. A entrega de Fernanda foi tão impactante que lhe rendeu o Golden Globe de Melhor Atriz em Filme Dramático, tornando-se a primeira mulher brasileira a conquistar tal honraria. Esse feito histórico carrega um peso simbólico ainda maior ao lembrarmos que, em 1999, sua mãe, Fernanda Montenegro, foi indicada ao mesmo prêmio por Central do Brasil, mas não venceu.


Walter Salles, reconhecido por sua habilidade em contar histórias profundamente humanas, oferece uma direção que prioriza a intimidade e o olhar sensível sobre o cotidiano de uma família destroçada pela violência de Estado. A casa dos Paiva, que outrora era um símbolo de abertura e acolhimento, torna-se um espaço de memória e resistência, capturado pela câmera de Salles com delicadeza poética. A construção dos ambientes, o uso de fotografias antigas e os planos que oscilam entre a calma do cotidiano e a brutalidade do contexto histórico são marcas da direção impecável do cineasta.


Além de ser um drama familiar profundamente comovente, “Ainda Estou Aqui” é também um filme político no melhor sentido da palavra. Ele resgata uma memória coletiva que precisa ser mantida viva, para que as feridas abertas pela ditadura possam ser reconhecidas e jamais esquecidas. Eunice, ao se tornar um símbolo de resistência e resiliência, ecoa as vozes de tantas outras mulheres que, como ela, carregaram nas costas o peso do luto e a busca pela justiça em um Brasil marcado pela repressão.


O filme insere-se no legado do cinema brasileiro em dialogar com nossa história e projetá-la no cenário mundial. Assim como Central do Brasil foi laureado com o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Golden Globes de 1999, “Ainda Estou Aqui” reafirma a relevância do cinema de Walter Salles, capaz de unir o íntimo ao histórico, o individual ao coletivo. É uma obra que emociona e provoca, lembrando-nos da importância de preservar a memória como um ato de resistência e de luta por um futuro mais justo.


O impacto de “Ainda Estou Aqui” se consolidou no cenário internacional, com o filme recebendo o prêmio de Melhor Roteiro no prestigiado Festival de Veneza, um reconhecimento à profundidade e à força narrativa da obra. Agora, com o Globo de Ouro, cresce a expectativa de que o longa seja indicado ao Oscar, especialmente nas categorias de Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz para Fernanda Torres. A lista de indicados será anunciada em 17 de janeiro, e o filme de Walter Salles já é apontado como um forte concorrente, reforçando a força do cinema brasileiro em dialogar com temas universais e históricos de maneira sensível e impactante.


Assista ao trailer

 

■ Por Richard Günter

Jornalista, pós-graduado em Roteiro Audiovisual e graduando de Cinema

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